Sergio Carlos Covello
A “noite escura da alma” é metáfora de uma experiência mística que envolve paradoxo, porque essa experiência é iluminativa e, no entanto, obscurece a consciência e acarreta sofrimento. Para extrair sentido dessa contradição, faz-se necessário examinar o rico simbolismo da noite no imaginário dos povos.
Entre os mitos gregos, Noite é o nome de uma deusa, filha do deus Caos, o vazio primordial antes de serem ordenados os elementos do mundo. Essa deusa personifica as trevas superiores e é representada com um manto escuro, a percorrer o céu, enquanto seu irmão, Érebo, simboliza as trevas inferiores. A deusa Noite gerou várias divindades, algumas benéficas, outras maléficas, sendo a mais importante delas o Dia (Hêmera), a divindade que trouxe a luz ao universo. Também na tradição judaica, a noite apresenta ora um aspecto negativo, ora um aspecto positivo.
No Gênesis, ela denomina as trevas, sendo inferior à luz: “E viu Deus que a luz era boa, e fez separação entre a luz e as trevas. Chamou Deus à Luz Dia e às trevas, Noite (1.4-5)” . Em outras passagens, porém, a Bíblia ressalta o aspecto positivo da noite. Por exemplo, em Jó 35.10, lê-se que “Deus inspira canções de louvor durante a noite”. A noite é, portanto, o momento da inspiração divina. E em Salmos 19.2, a noite relaciona-se com a sabedoria: ” Uma noite – diz o salmista – revela conhecimento a outra noite”. Não por outra razão a coruja, pássaro notívago, representa, de longa data, a filosofia, simbolizando o saber e a clarividência.
Na arte poética, a noite é geralmente evocada como o período propício ao romance, pois à noite, cessadas as atividades laborativas do dia, o ser humano pode ir livremente em busca do outro. Neste caso, a noite exerce fascínio: “Tudo tem suave encanto quando a noite vem”, diz a canção popular. Na esfera psíquica, a noite significa a face oculta da consciência, o inconsciente, que, durante o sono, geralmente à noite, vem à tela mental através de símbolos que expressam não só os desejos, mas também a sabedoria, a criatividade e as mais belas intuições.
Na teologia mística, a noite foi aos poucos adquirindo o sentido de estado de consciência com relação à Divindade, a eterna Incógnita envolta metaforicamente no manto negro da noite. “Deus habita as trevas” – dizem os místicos, porque nunca ninguém conseguiu ver Deus, nem Moisés e o povo eleito. Tudo o que sabemos sobre Deus são conceitos humanos.
O homem presume que existe uma causa inteligente para o universo e chama a essa causa de Deus, atribuindo-lhe qualidades humanas (como a bondade, a justiça e a misericórdia). Cria, assim, Deus à sua imagem e semelhança. A teologia mística, ao contrário da teologia especulativa (baseada em conceitos e teorias), objetiva um conhecimento experimental – a posse interior de Deus pela contemplação que implica o despojamento do ego, visando à união da alma com “aquele que está além de todo ser e de todo saber”.
A esse estado de despojamento os místicos alemães do século 14 chamaram de “noite escura”, expressão que foi consagrada 200 anos mais tarde pelo frade carmelita São João da Cruz, num poema lírico de oito estrofes em que o poeta relata a própria passagem por essa prova que antecede a plena iluminação. Nos comentários a esse poema, diz São João da Cruz que, mediante a noite escura, a alma se dispõe e encaminha para a divina união de amor.
É possível explicar a jornada mística como a busca do Eu profundo, a dimensão expandida da consciência, para além do pequeno ego, de modo que a consciência individual se transforme em universal ou cósmica.
Mas os místicos cristãos (e mesmo os não-cristãos teístas) consideram a ampliação da consciência como a união da alma com Deus, por analogia com o casamento humano, que é uma experiência transformadora na vida dos nubentes. Nessa etapa do desenvolvimento consciencial só entram as pessoas espiritualmente adiantadas, isto é, as que já se converteram para a sua dimensão maior e obtiveram algum grau de luz. Não se trata de período agradável, visto que é de provação.
Segundo São João da Cruz, a noite escura consiste na mortificação dos sentidos e do espírito, por isso que produz abatimento, esgotamento mental e fadiga. Mas esse transe é altamente desejável, porque faz surgir o homem novo de consciência totalmente renovada.
A passagem pela noite escura da alma encontra apoio nas escrituras bíblicas. Tanto no Antigo, como no Novo Testamento, há vários exemplos de pessoas santificadas que sofrem provação antes de receberem um grande benefício.
A noite escura do Cristo teve início no Getsêmane, pouco antes de o Divino Mestre ser preso, e terminou na cruz com a sensação de abandono: ” Eli, Eli, lamá sabactâni” (MT 27.46).Graças, porém, à tormenta física e mental, Jesus de Nazaré ressurgiu como o Cristo Cósmico Eterno, dando ensejo a uma das mais influentes tradições religiosas do mundo.
Na expressão Noite Escura, que dá nome à poesia de São João da Cruz, estão implícitos os vários sentidos figurados da noite: o mitológico (geratriz da luz), o sapiencial ( momento da sabedoria e da inspiração divina), o poético (instante doce do amor) e o psicológico (centro de consciência transcendente).
A análise, ainda que sumária, dos belos versos do poema permitirá a melhor compreensão dessa fase do desenvolvimento da consciência, na visão poética do monge que fez da busca do Absoluto seu ideal de vida:
NOITE ESCURA
Canções de S. João da Cruz (1542-1591) que descrevem o modo pelo qual o místico chega ao estado de perfeição espiritual. (1578)
1. Em uma noite escura,
De amor em vivas ânsias inflamada, (1)
Oh, ditosa ventura!
Saí sem ser notada, (2)
Já minha casa estando sossegada. (3)
2. Na escuridão, segura,
Pela secreta escada, disfarçada, (4)
Oh, ditosa ventura!
Na escuridão, velada,
Já minha casa estando sossegada.
3, Em noite tão ditosa,
E num segredo em que ninguém me via,
Nem eu olhava coisa,
Sem outra luz nem guia (5)
Além da que no coração me ardia.
4. Essa luz me guiava,
Com mais clareza que a do meio-dia,
Aonde me esperava
Quem eu bem conhecia, (6)
Em sítio onde ninguém aparecia. (7)
5. Oh, noite que me guiaste!
Oh, noite mais amável que a alvorada!
Oh, noite que juntaste
Amado com amada,
Amada já no Amado transformada! (8)
6. Em meu peito florido
Que, inteiro para ele só guardava,
Quedou-se adormecido,
E eu, terna, o regalava,
E dos cedros o leque o refrescava.
7. Da ameia a brisa amena, (9)
Quando eu os seus cabelos afagava,
Com sua mão serena
Em meu colo soprava,
E meus sentidos todos transportava.
8. Esquecida, quedei-me,
O rosto reclinado sobre o Amado; (10)
Tudo cessou. Deixei-me,
Largando meu cuidado
Por entre as açucenas olvidado.(11)
(1) Trata-se de alma adiantada na espiritualidade, pois está incendiada do amor a Deus.
(2) Isto é, saiu de si, sem ser impedida pelos sentidos inferiores que compõem o ego.
(3) Casa sossegada: vida interior com pleno domínio das pulsões inferiores e das paixões menores.
(4) A escada mística da ascese rumo à Divindade. A escada joanina desdobra-se em 10 degraus.
(5) A luz da fé e do amor.
(6) Em sendo evoluída, a alma já conhecia a Divindade.
(7) O centro da alma, o espírito que é também sua parte mais alta.
(8) Pela união com a Luz a alma se transforma na Luz.
(9) Ameia: cada um dos arremates salientes, separados por intervalos regulares, construídos na parte mais alta do castelos, das torres e das muralhas que protegiam as cidades antigas. Vê-se que a alma subiu a escada para encontrar a Divindade.Brisa amena é sopro, símbolo do influxo espiritual de origem celeste.
Mensageiro divino, o vento afasta as trevas. Na tradição bíblica, o “sopro de Deus” animou o primeiro homem. No poema, o sopro de Deus faz surgir o ser iluminado ( o novo homem que retornou à origem divina).
(10) Esquecida de si, quer dizer, com a atenção concentrada só no Amado.
(11) Sua inquietação desapareceu.
Gratidão à Fonte: Instituto Consciência Adamantina http://claudiovelasco.ning.com
Por: Lisa Teixeira
Agosto / 2011