A voz da consciência
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A voz da consciência




















A Folha de S. Paulo publica hoje uma ótima entrevista com o neurocientista português António R. Damásio, que tem carreira brilhante nos Estados Unidos - onde atualmente é professor de Neurociência na University of Southern California -, em que ele aborda, além da área em que é especialista, temas variados como consciência, religião, ciência, ateísmo, linguagem, entre outros assuntos, e todos de uma maneira sucinta e equilibrada. Vale a pena ler:

A voz da consciência

Damásio e a festa movediça dos pensamentos

RESUMO

O neurocientista António R. Damásio propõe um modelo para explicar a consciência humana, que se formaria em três níveis: o "protosself", o "self central", desenvolvidos na infância, e o "self autobiográfico", que segundo ele seria um "trabalho em andamento", fruto do acúmulo de nossas experiências e reflexões sobre o mundo.

CARLOS MESSIAS

O "SELF" PODE ser entendido como a consciência do eu e do mundo ao redor, a unidade central e reguladora do que somos, sentimos e vivemos. Em seu "Livro do Desassossego", Fernando Pessoa se refere à consciência como uma "orquestra oculta" e diz desconhecer quais "instrumentos tangem e rangem" nela: "Só me conheço como sinfonia".

Em seu quarto livro, "E o Cérebro Criou o Homem" [trad. Laura Teixeira Motta, Companhia das Letras, 439 págs., R$ 49], outro português, o neurocientista António R. Damásio, 67, aprofunda seu mergulho na sinfonia citada por Pessoa -ou, em suas palavras, na "festa movediça" de imagens, memórias e sentimentos que é a consciência humana. No livro, o autor prossegue sua ambiciosa investigação sobre o papel do corpo e de nossa origem animal nas representações mentais e propõe tese pioneira ao apontar o tronco cerebral, e não o córtex pré-frontal, como centro da consciência.

"Procuro articular a forma como os sentimentos são fundamentais na construção da consciência, tanto do que somos quanto do que está a nossa volta", disse o autor em entrevista à Folha, concedida por telefone, em seu gabinete na Universidade do Sul da Califórnia, onde coordena o Instituto de Cérebro e Criatividade.

Neodarwinista e ex-pupilo de Norman Geschwind, o pai da neurologia comportamental, Damásio reconhece que é preciso ter fé na ciência e acredita em tratamentos médicos e espirituais combinados.

Folha - Em que sentido "E o Cérebro Criou o Homem" complementa "O Erro de Descartes"?
António R. Damásio - Em vários sentidos. "O Erro de Descartes" teve muito a ver com o problema fundamental da emoção e a maneira como ela influencia as nossas decisões. Este livro também fala sobre isso, mas procuro articular a forma como os sentimentos são fundamentais na construção da consciência, tanto do que somos quanto do que está ao redor. Eu me aprofundo mais nas origens da mente, nos sentimentos básicos e na consciência.

Mas, se a consciência é fundamental para tomarmos conhecimento do mundo, estava Descartes (1596-1650) realmente tão equivocado?
Sim, pois são os sentimentos básicos que nos permitem ter consciência. Eles são os alicerces da nossa realidade refletida. Depois vêm a linguagem, o raciocínio complexo e toda a criatividade. "Penso, logo existo" dá uma impressão falsa de que só os seres que têm capacidade de pensar podem existir, mas, muito antes de haver pensamento, já existiam seres que sentem seus próprios corpos, sentem suas vidas e, portanto, existem. O correto seria "tenho sentimentos, logo existo".

A linguagem seria a unidade fundamental da consciência?
Existem muitos outros aspectos associados com a memória, com o raciocínio complexo e eventualmente com a linguagem e com o raciocínio baseado na linguagem. Um cão ou um chimpanzé são capazes de raciocinar até muito bem. No entanto, eles não têm linguagem como nós temos, o que nos permite explicar nossas ideias e nos comunicar uns com os outros.

Essa relação de continuidade estaria explícita na sua tese de que o tronco cerebral, estrutura mais primitiva do que a região cortical, seria o centro da consciência?
Exatamente. Um dos pontos fundamentais do livro é mostrar como entender a consciência como função cortical é pensar ao contrário. É como construir um edifício a partir do 20º andar, quando, na verdade, deve-se começar pelo alicerce. E o tronco cerebral é o alicerce da consciência e do sentir. Só depois vêm muitos andares, onde as funções tornam-se mais complexas. E, quando se chega ao córtex cerebral, as coisas tornam-se de fato muito complexas.

Se é tão óbvio, por que tanta demora em chegar a essa conclusão?
É interessante que essa constatação seja baseada em muitos dados que já existiam. O deslumbramento com o córtex cerebral é fruto de uma era das neurociências que está prestes a acabar. Isso poderia ter sido concluído há mais tempo, mas as pessoas ainda se deixam levar pelo fascínio pelo córtex cerebral, afinal, é a estrutura mais distintamente humana e induz a concluir que aquilo que é mais complexo é, portanto, humano. O que não significa que seja o sítio onde começa a humanidade.

Desse processo advêm as três instâncias do self que o sr. propõe?
Com certeza. Há um protosself, extremamente simples e primordial. Depois, há um self central, que é um pouco mais complexo e compartilhado com vários animais. Por fim, há o self autobiográfico, que é sobretudo humano.
É aquilo que todos nós compreendemos, pois nos dá uma história própria. Distingue aquilo vivemos, aquilo que pensamos e, portanto, nos dá noção de que somos seres únicos. Essa, sim, depende do córtex cerebral. Para chegar a esse estágio, todas as partes do cérebro trabalham colaborativamente.

Quando essas propriedades do self se manifestam no processo de desenvolvimento de uma criança?
O protosself e o self central desenvolvem-se rapidamente após o nascimento. Um bebê com um ano tem o protosself e o começo do self nuclear. O self autobiográfico só se desenvolve entre os 18 meses e os dois anos de idade. Há quem diga que demora mais que isso, porque muito poucas pessoas têm memórias de quando tinham essa idade.
O self autobiográfico é um trabalho em andamento. O self que eu tenho hoje é completamente diferente do que eu tinha aos 12 anos. Vai ganhando mais profundidade por causa do acúmulo de experiência em decorrência da nossa análise dessa vivência, pois constantemente analisamos e repensamos aquilo que nós somos.

O seu livro não emite conclusões fechadas, mas reconhece que a consciência é uma somatória de fatores. Ainda será possível mapear todas as funções cerebrais?
Sem dúvida nenhuma vamos avançar cada vez mais. Só é preciso ter alguma modéstia para reconhecer que jamais poderemos mapear o homem completamente. Não podemos nos esquecer de que, quando nos ocupamos do ser humano, estamos olhando para algo extremamente belo e complexo. Só se fôssemos muito presunçosos poderíamos pensar que vamos explicar tudo isso.
Ficamos contentes quando avançamos, mas sempre haverá algo a explicar. Acho bom que algo complexo como o ser humano não seja, nem será em cem anos, completamente explicável. Há de se esperar com paciência e modéstia.

Se isso ocorresse, o homem poderia passar a induzir, em si mesmo ou nos outros, estados de consciência?
Sou um otimista. É claro que é preciso ficar atento para não deixar que o conhecimento seja usado para finalidades vis. É interessante pensar que, quanto mais soubermos sobre isso, mais poderemos usufruir desses avanços a nosso favor. É preciso pensar como esse tipo de conhecimento traz mais benefícios do que malefícios.

O sr. é a favor do uso de psicofármacos?
Tudo o que puder ajudar alguém a deixar de sofrer é de grande serventia. A depressão, por exemplo, é causa de grande sofrimento. E não deve ser combatida só com medicamentos. É preciso, antes de mais nada, entender o que se passa e refletir sobre isso. Algumas causas estão relacionadas ao cérebro, outras ao ambiente e muitas vêm dos dois. Precisamos atacar as duas frentes.

O sr. é um dos principais representantes do neodarwinismo, como o biólogo Richard Dawkins ou o etólogo Desmond Morris. No entanto, não levanta a bandeira do ateísmo.
Tenho admiração por trabalhos de ambos. Mas não me identifico com a apresentação pública deles.
Não sinto necessidade nenhuma de declarar minha orientação religiosa. As pessoas não têm nada a ver com o que acredito. Sempre que alguém usa a ciência para tentar impor suas crenças, me parece algo excessivo e deslocado. Ainda sabemos tão pouco que não temos como fazer pronunciamentos sobre problemas tão profundos quanto crenças e as razões do universo. As pessoas podem ter opiniões, mas não devem dizer aos outros o que pensar.

Ciência e religião têm uma coisa em comum: a fé. Em qual o sr. acredita?
Ambas precisam de fé. Mas, para ser coerente com a minha resposta anterior, prefiro não me pronunciar quanto às minhas crenças religiosas.

Como médico, aceita que a religião seja usada no tratamento?
Desde que a pessoa tenha consciência do que está fazendo, não vejo problema nenhum em que ela concilie as duas coisas.

"'Penso, logo existo' dá impressão de que só seres capazes de pensar podem existir, mas, antes do pensamento, já existiam seres que sentem seus corpos e, portanto, existem"

"É preciso ter modéstia para reconhecer que jamais poderemos mapear o homem completamente. O ser humano é algo extremamente belo e complexo"

"Não sinto necessidade de declarar minha orientação religiosa. Ninguém tem nada a ver com o que acredito. Usar a ciência para tentar impor crenças me parece algo excessivo"

Fonte: http://ocontornodasombra.blogspot.com
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Lisa Teixeira
http://muraldecristaal.blogspot.com
Novembro / 2011



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